O texto a seguir é emocional. Diz respeito ao silêncio de
uns diante das frases abomináveis de outros. Diz respeito também dos gritos,
que tantos tentam silenciar. Trata-se de um tema complexo e frágil. Trata-se de
como discursos (que podem ser mal ou bem intencionados) violentam minorias.
“Como beber dessa bebida amarga/
Tragar a dor, engolir a labuta/ Mesmo calada a boca, resta o peito/ Silêncio na
cidade não se escuta/ De que me vale ser filho da santa/ Melhor seria ser filho
da outra/ Outra realidade menos morta/ Tanta mentira, tanta força bruta”
(Cálice, Chico Buarque, 1978)
[O texto é voltado para um determinado público, nós que de
algum modo temos privilégios e por vezes estamos insensíveis a determinadas
contingências]
Dizem os ditos populares que é a morte que iguala os homens
e mulheres, dizem. No entanto, é perceptível como um evento que deveria
sensibilizar e unir grupos acaba por gerar contextos de disputa. Trato assim da
infeliz morte da vereadora Marielle Franco cujas classes sociais que
representavam eram: mulher, negra, lésbica, feminista, militante, de esquerda e
mãe-solo.
Não vou entrar na discussão profunda sobre estes lugares, os
quais não pertenço. Mas cabe a nós, psicólogos e psicólogas em formação ou não,
atentarmos para o fato de que há uma engenharia social voltada para o
silenciamento das vozes que ganharam destaque ao longo dos últimos anos. São
vozes a muito marginalizadas pela história brasileira, são vozes que apresentam
risco para o estado hegemônico. São vozes contrassensuais.
Vamos às condições:
·
Determinados grupos entristeceram e se
solidarizaram com a morte da vereadora;
·
Determinados grupos atacam os grupos e pessoas
que se solidarizam com a morte da vereadora; e
·
Determinados grupos tratam o evento como neutro,
sem significância, o naturalizam.
Se pararmos para avaliar e verificar que grupos e pessoas se
solidarizaram com a morte da vereadora, perceberemos que terão práticas sociais
em comum, participam da mesma comunidade verbal e agem em função de instruções
que são classificadas como “de esquerda”. Imaginemos que somos estudantes
secundaristas e há duas situações: (1) um estudante da nossa escola sofre morte
violenta próximo à escola e (2) um estudante que nunca vimos, de um bairro
muito distante do nosso, sofre morte violenta perto da sua escola. Agora, a
qual das duas situações te parecerá de maior urgência para sua segurança? Sigamos.
O segundo grupo, que não partilha das mesmas contingências
sociais, talvez nunca tenham vivido contextos similares a depender da
estratificação social e geográfica que veio. Este grupo não se identifica com
os “de esquerda” e inclusive nutrem sentimentos negativos quanto a estes.
Suponhamos que frases a seguir sejam comuns para este grupo, como: “Bolsa
Família só sustenta preguiçoso”, “Ele poderia ter escolhido outro caminho”,
“Isso ocorreu porque andava sozinha(o) na rua nesta hora”, etc. Para aqueles
que não partilham das condições sociais dos beneficiários, parece preguiça
quando temos um crescente número de desempregados. Para aqueles que a família
possibilitou o privilégio de escolha aos filhos, devido o acesso a melhores
escolas, comida, etc., parece fácil acreditar que todos têm mesmas condições de
formação social. Para aqueles que culpam a vítima, talvez nunca tenham sido
assaltados e tenham o privilégio de trabalhar em horários convencionais. Isso
tudo não justifica a insensibilidade à condição de sofrimento do outro, mas
explica.
É comum que aqueles do primeiro grupo “de esquerda” sofram
devido às condições sociais mantidas pelos que detêm o poder (como políticos
eleitos, agrônomos, figuras religiosas, etc./ aqueles que têm condições de os
reforçadores e aplicar punições). Enquanto isso, os do segundo grupo sofram com
o avanço das políticas de minorias e perca privilégios (reforçadores) como ter
uma empregada doméstica sem direitos
trabalhistas, diminuir as chances de seu filho entrar em uma universidade
pública devido às cotas ou torne mais fácil de sofrer punições caso assedie
alguém (seja sexualmente ou moralmente).
Já o terceiro grupo, pode não compartilhar das contingências
que modelaram o comportamento de militância do primeiro grupo e foram
socializados de modo a concordarem com comunidade verbal daqueles que detêm o
poder (instruções verbais familiares, escola, trabalho, etc.). Por exemplo: por
não sermos homens, não compreendermos o medo das mulheres andarem sós na rua
(apesar de dizermos temer assalto, mas não tememos por violarem nossos corpos);
por não sermos negros, não compreendermos o olhar de seguranças nos corredores
dos shoppings (apesar de que talvez já tenha ocorrido, não é comum); por sermos
heterossexuais, não tivemos que apresentar conjugues como “amigos”; etc. Há uma
série de situações que apenas aqueles que às vivenciam tem condições de
compreender e não podemos ser cínicos de dizer que há relações sociais
simétricas. O perigo maior reside na concordância com instruções sociais que
dificultam o acesso de determinados grupos aos reforçadores com o discurso como
o de que nascemos iguais, então todos tem iguais condições. Estas regras não
são neutras, como gostam de crer. São regras que emergem das relações sociais,
são modeladas e mantidas por grupos sociais privilegiados. É fácil dizer que tem
que ensinar a pescar, quando não se é beneficiário desta política social, mas talvez receba aposentadoria do tio-avô
ex-militar. Ou seja, é um grupo concordante com a manutenção dos privilégios
que temem perder, pois o primeiro grupo passa a se beneficiar de determinadas
políticas.
Em resumo: todos os três grupos são passíveis de perca de
reforçadores, mas há apenas uma camada social que não sofre nada e, ainda, se
beneficia das disputas entre os grupos. Sendo que é importante frisar que há
grupos menos privilegiados que outros e não há simetria na disputa política
formal e informal, pois há regras e instruções bem estabelecidas que
naturalizam determinados fenômenos sociais ou os ridiculariza.
Voltando, o perigo maior é o comportamento verbal. Há pessoas
que dizem que se trata apenas de debater ideias, ou ideias diferentes e que é
preciso de pluralidade ideológica. Percebam que debater ideias, ouvir ideias
diferentes (inclusive ofensivas) e dar mais espaço a quem já tem (usa dos
mesmos discursos já estabelecidos pela comunidade verbal dominante) não muda em
nada nas condições físicas que os grupos dominados vivem. Discutir ideias não
melhora saúde, segurança e educação. Discutir ideias apenas fornece contexto
para receber elogios de pares em grupos acadêmicos e por vezes destaque social
nas redes sociais. Talvez, o que diferencia as ideias “de esquerda” para as
demais é que a primeira apresenta risco de mudança das condições físicas que
mantêm o controle de grande parte do comportamento da população enquanto as
demais ideias apenas apresentam formas brandas de manter o poder dos dominantes
agradando pequenas parcelas dos dominados (ou seja, não terá impacto nas
condições físicas que mantêm desigualdade).
Sendo assim, finalizo dizendo que aqueles que tentam
silenciar estas vozes, aqueles que são concordantes com o silêncio, aqueles que
não se importam, são aqueles que se beneficiam das condições sociais de
desigualdade. Uma mulher negra, lésbica, militante, de esquerda e mãe-solto não
morreu porque apenas discursava, morreu porque trazia consigo possibilidades
reais de perigo a quem está no poder. Não era apenas um discurso, é Luta!
Adorei a discussão, parabéns!
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